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DISCERNIMENTO COMO PROCESSO pt 2

14/09/2020

4.      Movimentos interiores e regras de discernimento

     No processo de discernimento pessoal, ou comunitário, é preciso compreender qual é ação de Deus, como ele age e se manifesta e, ao mesmo tempo, entender qual o seu papel no processo de discernimento, pois o Senhor não quer participar desse processo como aquele que tira a nossa liberdade, ou mesmo resolve tudo por nós. Deus não é o nosso inimigo, pelo contrário, é o nosso amigo e parceiro de caminhada. Por isso, Ele quer caminhar conosco, ajudando-nos a enxergar o caminho mais seguro, do mesmo modo que Jesus fez com os discípulos de Emaús, ao escutar e falar pacientemente, como também agir discretamente.

      Em momento nenhum desse processo de discernimento, Deus quer tirar a nossa vontade, ou manipulá-la, pois isso é próprio do mal espírito. Daí que podemos dizer que muitas vezes nos aproximamos do discernimento já repletos, mergulhados no mal espírito e no seu modo de proceder, que muitas vezes queremos, sim, sair com a nossa vontade em detrimento da vontade de Deus. Pode ser que essa vontade esteja bastante dissimulada em nossas palavras bem articuladas, em nossos discursos prontos, porém, não suportaria o momento de silêncio e oração diante do Senhor, e ele logo desmascararia tudo.

   Sobre isso, Pe. Benjamim González Buelta sempre afirma em suas falas e escritos que necessitamos estar atentos a tantas propostas que "desembarcam em nossos sentidos inumeráveis sensações seduzidas"3 querendo nos "saturar de sensações e colonizar-nos na cultura da sedução", no desejo de simplesmente nos enganar e manipular. O mal espírito nos engana "por baixo da aparência de bem", diz ainda Pe. Benjamin a respeito dessa tentação frequente que corrói a vida evangélica e a quebra de maneira escandalosa4.

      Ademais, Santo Inácio de Loyola, nos Exercícios Espirituais (EE) n. 331, nos diz que com uma causa precedente, tanto o anjo mau, como o bom podem consolar. Ou seja, "O bom anjo, para proveito da alma, para que cresça e suba de bem a melhor; o mau, para o contrário e, posteriormente, para arrastá-la à sua perversa intenção e malícia". No número anterior, Santo Inácio deixa bem claro: "Só Deus pode consolar sem causa precedente", ou seja, a verdadeira paz e alegria, sem motivo externo ou interno, Deus pode nos dar. Por isso, a necessidade de maturidade na fé, a fim de não se deixar enganar pelo que sentimos e, ao invés disso, saber de verdade detectar a voz de Deus e o que Ele põe dentro de nós. Em verdade, esse conhecimento espiritual é essencial que, muitas vezes, o anjo mau pode se vestir de anjo de luz, diz também Santo Inácio.

       Em outras palavras, há uma manipulação e saturação dos sentimentos que podem apagar a vela da lucidez e da sensatez. Se isso acontece, enchemo-nos de nós mesmos, pagando qualquer preço, para vencermos a batalha da sedução com os nossos melhores argumentos, até mesmo indo contra Deus. Nessa circunstância, tentamos trazer Deus para a nossa vontade, quando deveria ser o contrário: "Pois cada qual esteja convencido de que tanto mais progredirá em todas as coisas espirituais, quanto mais se libertar de seu amor-próprio, vontade e interesse" (EE 198).

       As Regras de discernimento nos EE nos levam a perceber que o mal espírito age para confundir. Na Primeira Semana (primeira etapa dos EE), ele age de modo dissimulado, fazendo parecer que o mal é bem; na Segunda Semana, ele age de modo mais forte e descarado, sem misericórdia, na medida em que seu objetivo é ganhar o centro da nossa decisão que é o nosso coração. Diante disso, ressaltamos a importância da maturidade, do exercício constante da oração, do silêncio e da escuta: para saber discernir as vozes sem nos enganarmos. Isso sim é uma arte espiritual.

         Atitudes, como a oração constante e da vida interior, separam o que é uma decisão comum do "buscar e encontrar a vontade de Deus". quem está "treinado" a escutar a "sinfonia do Espírito" poderá entrar em processo de discernimento, sem medo de errar. Nesse sentido, o exame de consciência diário, aconselhado por Inácio de Loyola, será o grande instrumento de trabalho, para quem deseja discernir. Nele, será possível tomarmos consciência de quem nos move internamente, ou quem nos moveu durante uma situação concreta.

Em função disso, a perspicácia de quem tem uma vida de oração e de escuta cotidiana é uma grande aliada na hora de desamarrar as armadilhas do mau espírito, haja vista que ele nos vai corroendo, como o cupim na madeira, a ponto de percebermos, que o que temos ali dentro da nossa casa é apenas a casca da madeira, mas que, de verdade, está tudo desmoronando pouco a pouco. Em algumas situações, vemos até os sinais, no entanto, vamos protelando, postergando até que tudo desmorone, pois já cansamos de interpretar um papel, de representar aquilo que não somos e o que não sentimos.

 

5.      O que nos move por dentro?

      Um passo importante na maturidade espiritual, e que muito nos ajudará no bom e santo discernimento, será sermos capazes de perceber as misturas que existem em nós. Elas nos impulsionam, fazem-nos movimentar daqui para lá, sem que sintamos que caímos em uma armadilha. Por conseguinte, torna-se fundamental e necessário desmascará-las, jogar luzes sobre elas, pois essas moções são gestadas dentro de nossa escuridão.

     Todavia, passo a passo, vai sendo construído também o Reino de Deus, quase que caminhando lado a lado, basta lembrar o grupo dos apóstolos, sobretudo Pedro. Destacamos que a força religiosa que nos fala internamente, nos atrai, mesmo sendo negativa ou positiva. Tudo depende do que nos move. Há, por exemplo, muitos homens bombas caminhando entre nós. Muitas vezes não percebemos.

      Dessa maneira, o discernimento acontece e é gerado dentro do coração, por isso é necessário tirar a poeira dos nossos sentidos, a fim de que possamos ser capazes de deixar-se tocar pela Palavra de Deus. Com isso, desmascaramos as nossas verdadeiras intenções e, consequentemente, conduzimos verdadeiros e sérios discernimentos. Logo, entendemos agora que o discernimento é um processo que exige a todas as partes implicadas, a mais profunda liberdade interior e exterior.

         Sobre isso, não podemos ser cegos, como o homem rico da Bíblia, que tinha reta intenção, observava a lei, mas era apegado a tudo o que tinha. Observar a lei poderia ser apenas uma forma de mostrar que ele era bom, justo, e que, portanto, isso justificaria a sua relação de apego com os seus bens. Porém, quando apareceu uma razão maior que lhe faria um homem bom de verdade, ele não volta mais, faz a opção de ficar consigo e com sua fortuna. O amor ao próximo não passava de uma teoria religiosa que o obrigava a acolhê-la para ser salvo.

 

6.      Conclusão

      Qual a imagem de Deus revelada por meio dos jovens que nos chegam? Cada jovem traz em si uma experiência de Deus, além de também trazer a imagem de Deus que ele experimenta ou não. Ou seja, cada pessoa carrega em si um mistério muito profundo, mas nem sempre as palavras ditas expressam a mais pura realidade. Dessa forma, não podemos ficar naquilo que escutamos somente, porém, precisamos ser pessoas maduras para saber ouvir e enxergar o que não foi dito, pois muitas vezes é por ali que Deus caminha.

      Nesse sentido, o discernimento não é somente um momento, um método que utilizamos pontualmente para chegarmos seguros ao que se deseja, isto é, descobrir a proposta de Deus, senão uma dimensão da vida cristã que deve estar ativa sempre. Mesmo em momentos de crise pessoal, profissional etc., essa dimensão nos ajudar a facilitar a percepção da proposta de Deus e a consolidar a consistência de nossa resposta.

    O discernimento faz parte do caminho maduro, construído pelo cristão que segue a Jesus Cristo. Precisamos encontrar, e contemplar, a sua presença salvífica que se doa e se entrega sem limites e medidas. O acompanhamento espiritual é uma oportunidade de testemunhar a ação amorosa de Deus na vida de uma pessoa. Não temos e não podemos atrapalhar, ou mesmo interferir, no caminho e na rota que o Senhor nos apresenta. O nosso papel é com a maturidade e a lucidez, a fim de ajudar a perceber se aquele caminho pertence à dinâmica do Senhor. No entanto, para isso é primordial que façamos primeiro, o nosso dever de casa: oração cotidiana, exame de consciência e acompanhamento espiritual. É deixar-se conduzir pela voz do Senhor.

     A inutilidade da vocação é comprovada aí nesse momento, quando vemos que o nosso papel não é conduzir, nem tão pouco orientar, muito menos decidir por ninguém. A nossa vocação de formadores e diretores, ou acompanhantes espirituais é revelar que somos meramente servos inúteis, não servimos para nada mais, a não ser sermos presença confiante do amor. Não entramos no seminário para produzir, para o sucesso, nem tão pouco para substituir outras pessoas, ou para portar o sacramento às pessoas, no caso do sacerdote, mas sim, para uma unidade profunda com Deus, para que Ele possa ser tudo em todos.

      Sendo assim, termino como falou Inácio de Loyola em seu Diário Espiritual (DE): "Para onde me quereis levar, Senhor?" (DE 113); "Seguindo a Ti, Senhor, eu sei que não poderei me perder" (DE 114). Assim, somos chamados a viver o dom da nossa vocação buscando sempre e em todas as coisas conhecer a vontade de Deus, sabendo que o discernimento da sua vontade não é para agir no lugar Dele, mas sim ajudá-lo a que Ele nos ajude (Etty Hillesum).

        Em tempos difíceis, somos chamados a criar condições humanas e espirituais para sabermos lidar com as crises e dificuldades, mas, muito mais, precisamos ter condições de, em meio a tantas pandemias e crises pessoais e sociais, sustentarmos as decisões que tomamos, de modo ablativo e maduro. A missão da Vida Religiosa é caminhar junto com os jovens, ao mesmo tempo que ajudamos o jovem a criar maturidade. Por isso, precisamos olhar para Deus, convidando esses jovens ao movimento do Espírito e apontando caminhos novos para a conversão. Na verdade, somos nós os primeiros convidados a dar o testemunho de maturidade espiritual e humana, capazes de sempre e diariamente decidirmo-nos e, mais ainda, capazes de sustentar as decisões que tomamos em liberdade.



1 José Laércio de Lima.SJ, nascido em Vitória de Santo Antão (PE), entrou na Companhia de Jesus em 1997. Foi formado pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte. Foi ordenado presbítero em 2008. Fez mestrado em Teologia Espiritual Inaciana pela Universidade Gregoriana, em Roma. Trabalhou na Pastoral Vocacional e Juventudes, também com universitários, foi Pároco em Iconha – ES e atualmente é Pároco na Paróquia Cristo Rei em Fortaleza. Foi Secretário das Paróquias, Igrejas, Santuários e Capelanias da Província dos Jesuítas e atualmente é Secretário para Colaboração, e Espiritualidade da Província dos Jesuítas do Brasil. Autor do Livro “A ousadia de amar até o fim” – Um itinerário espiritual como construção de identidade (Ed. Loyola).

2  QUEIRUGA, Andrés Torres. Fim do Cristianismo pré-moderno, Paulus 2003, p.63.

3  BUELTA, Benjamin González. “Ver o Perecer” Mistica de ojos abiertos. Sal TErrae, p. 134.

4 Pe. Benjamin González Buelta. SJ trabalha o tema do discernimento em seu livro El discernimiento – La novedad del Espíritu y la astucia de la corcoma. Sal Terrae 2020.