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Projeto Vocacional Vem e Segue-me
A PESSOA DO ANIMADOR VOCACIONAL: ASPECTOS PSICOLÓGICOS
31/08/2020
Por Annette Havenne*
Nesta segunda reflexão
que vocês solicitaram, o tema será a pessoa do animador vocacional,
com enfoque nos aspectos psicológicos da sua missão junto aos vocacionados
e vocacionadas.
O link com a minha primeira
reflexão, que tratava da relação de acompanhamento vocacional, é profundo:
na realidade o tema já apareceu nas
perguntas que vocês me lançaram no final da colocação e nos esboços de
respostas que ofereci. De fato, uma vez descrita a tarefa, a responsabilidade,
o objetivo do acompanhamento vocacional, a pergunta que vem espontaneamente é:
como deve ser, como deve se comportar aquele, aquela que acompanha? Também já
alertei que não adianta muito descrever o perfil de um animador, de uma
animadora ideal, perfeito, encantador e bem sucedido!
Pois não estamos tratando
aqui tão somente de "marketing vocacional", ou de se colocar como "coach" de
quem acompanhamos, trata-se de uma psicologia humana que se coloca a serviço da
espiritualidade do discipulado, como Jesus nos provoca a vivencia-lo no
evangelho.
Antes de tudo gostaria de
lembrar, sobretudo aos mais jovens entre vocês, que há relativamente pouco
tempo se criou a expressão animador vocacional, serviço de
animação vocacional. Antes falávamos de promoção vocacional: vocabulário que denota
uma compreensão diferente e muito mais restrita da vocação, limitando-se à tarefa
de "promover vocações específicas" para o sacerdócio ou a VRC, de preferência para sua diocese ou
congregação!
O que mudou para melhor,
de lá pra cá, foi a cultura vocacional. Falarei disso em primeiro lugar. Porque você
só pode compreender uma pessoa e sua
missão, dentro de uma determinada cultura, de um contexto. É a dimensão
sistêmica da psicologia como ela se pratica hoje! O que entendemos por cultura
vocacional? Diria que sinteticamente, é o modo de viver, conviver, dialogar, discernir, decidir... numa Igreja
onde todos
estão a caminho por que todos e todas foram chamados. A resposta a um
chamado não consiste apenas em se decidir por um estado de vida, mas de
modo bem mais amplo supõe a decisão de entrar numa dinâmica cotidiana que
qualifica a vida e as relações. Eis o apelo vocacional no seu sentido eclesial:
avançar juntos por causa da missão de evangelizar que nos motiva, nos impulsiona
e nos leva para frente, como discípulos e discípulas de Jesus, como batizados e
batizadas.
Claro que dentro desta
compreensão, não se trata de menosprezar as vocações de especial consagração: elas
são belas e importantes na caminhada da Igreja, não somente por causa da
necessidade de "mão de obra", mas pelo sinal profético que os e as
consagradas representam por seu testemunho de vida.
Também falando em dinâmica e não somente em estado de vida, não quero sinalizar que a vocação é transitória ou light... e que podemos troca-la a cada nova onda que aparece para surfar diferente... Mas quero dizer que vocação é algo que "nos diz respeito", a todos nós cristãos, e que não se refere a uma elite espiritual que teria ganhado um bilhete para viajar de primeira classe! É fácil de entender com a cabeça, mas até hoje não tenho certeza que já assimilamos isso de verdade!
Somente uma cultura
vocacional apreendida assim, neste novo contexto sinodal e missionário,
sustenta a tarefa do animador vocacional ao mesmo tempo aberto para ajudar a
discernir qualquer tipo de vocação na Igreja, mas também comprometido com a
seriedade existencial de um sim que não deve se questionar tão fácil a cada
dificuldade, que ela seja conjugal, pastoral ou ligada a uma comunidade de vida
consagrada.
A primeira consequência
desta mudança de cultura é que o animador vocacional é provocado a olhar
primeiro para sua própria caminhada, suas motivações profundas, seu
desejo fundante: ninguém faz carreira nesta área, nem vai atrás de resultados
brilhantes, ou números impressionantes de seguidores. Pois acompanhar pessoas,
anima-las nas dificuldades de um percurso exigente, ser verdadeiro nas relações
é algo que acontece na simples lógica do evangelho, na "teologia do UM" como
dizia o cardeal Martini: "Por um, vale a pena!" O que importa não é o sucesso
traduzido em números e sim o "dar frutos de vida"!
Esclarecido isso, podemos
agora olhar algumas atitudes de base que fazem parte desta cultura vocacional e
portanto do kit vocacional: gratidão, gratuidade, acolhimento e reverência
diante do mistério da vida, de Deus, do eu próprio e do outro com sua vocação. Estas
atitudes que escolhemos tomar geram amor de cuidado, misericórdia, compaixão,
perdão, na luz do belo, do bom e do verdadeiro!
Aqui entra a Cultura
como complexo de valores, valores humanos e evangélicos, as quais raramente
se contradizem! O que neste contexto se
espera do animador, da animadora vocacional é que dentro da sua fragilidade
humana, - pois não é Super-Homem, ou Super-Mulher, nem Homem-Aranha- ele ou ela
se esforce para alcançar uma versão melhor de si mesmo, apoiada
na pessoa de Jesus e que renove sempre sua decisão de viver a alegria do
evangelho. Somente isso e tudo isso! Os jovens estão cansados, os cristãos
desanimados pelos "gurus" que arrebanham membros para seus grupos ou
comunidades para depois se revelar ou serem denunciados como aproveitadores
financeiros ou predadores imorais! A coerência humana e espiritual do discípulo
autêntico de Jesus é básica. Construindo nesta rocha, podemos agora nos
embrenhar nas sendas dos aspectos psicológicos da pessoa e do ministério do animador
vocacional.
Às vezes, quando pensamos em desempenhar uma função,
uma tarefa, vem em nossa mente uma lista de talentos ou aptidões que qualificam
para a função, quem sabe a partir de uma entrevista. Qualidades que possuímos
ou não!
Penso ser mais fiel a Jesus e às correntes da psicologia humanista, chamando a atenção de vocês sobre a questão das habilidades: trata-se de um processo dinâmico e interativo, que consiste em treinar habilidades muito mais do que em ter qualidades. Quando falei da cultura, assinalei atitudes a tomar... Em se falando de psicologia falo agora de habilidades a desenvolver.
Vocês percebem aqui uma veia muito importante para quem acompanha, escuta, ajuda o outro a discernir, apoia-o nas suas dificuldades e nas suas opções pessoais.
Desejo introduzir um ponto teórico, que irei desenvolver em ligação estreita com sua experiência de vida: a teoria das inteligências múltiplas. Quem estudou história da psicologia está a par disso: hoje não avaliamos mais a pessoa meramente pelo seu QI intelectual, que testa sua capacidade lógica e linguística, ou seja, seu raciocínio. Tentamos ajuda-lo a descobrir em si outras variáveis ligadas a outras formas de inteligência: musical, corporal, e sobretudo intrapessoal e interpessoal. Essas duas últimas habilidades são de suma importância nas relações: elas formam a chamada "inteligência emocional", com suas duas vertentes: inteligência do nosso mundo interior e capacidade de ter empatia pela pessoa do outro. Reparem bem que ela tem a ver com emoções, e também com atitudes e habilidades!
Muitas formas de inteligência demostram sérios limites na medida em que envelhecemos, embora possamos compensar com nossa experiência prática. Porém, eis uma boa noticia: é comprovado que podemos desenvolver a inteligência emocional até o fim da nossa caminhada, talvez até com mais frutos na segunda parte da vida. Por isso a tarefa da animação vocacional supõe certa maturidade. Ou pelo menos intergeracionalidade na equipe vocacional...
A partir do trabalho para desenvolver a inteligência emocional, alguns estudiosos chegaram a uma nova variável, muito interessante para nós, a inteligência espiritual que mexe com a capacidade de dar sentido à vida, a partir de valores "transcendentes" ou seja aqueles valores que nos propulsam além de nós mesmos para nos relacionar, andar juntos, confiar, desenvolver esperança, amar... Dedicar-nos a alguém, aos outros, ao Outro que podemos chamar de Deus.
Hora de dar uma parada e de começar a tirar consequências práticas de tudo isso: na sua caminhada vocacional, você encontrou pessoas que realmente o ajudaram a se abrir para se entender melhor, a caminhar com mais segurança, a se aproximar de Deus, a fixar seus objetivos, a desejar dar o melhor de si com generosidade e a se levantar depois das quedas? Isso sem querer te controlar ou te dominar? Pense e anote alguns nomes... com gratidão!
É lá, no contato com esse tipo de pessoas, das quais você pode fazer memória, destes verdadeiros animadores vocacionais (pois tem também desanimadores vocacionais... sobretudo entre os que desviam do objetivo!) que você começou, quem sabe sem o perceber, sua aprendizagem por imersão, por participação deste tipo de habilidade que é ser companheir@ de jornada na vocação do outro. Claro que isso não o dispensou depois de uma formação mais técnica, mais objetiva, até acadêmica... mas a semente tinha sido lançada em seu coração!
Com estes exemplos de vida, não estamos longe da inteligência espiritual, que poderíamos retomar em linguagem bíblica, mais familiar para nós talvez, como sabedoria interior... sabedoria humana e espiritual. Um dom do Espírito santo, que supõe nossa colaboração ativa como acabamos de ver, e que os padres da Igreja chamavam de "inteligência das coisas de Deus!"
Outro aspecto do tema de hoje é a questão dos abusos psicológicos e morais por ocasião da animação vocacional. O tema do abuso que seja sexual, psicológico ou moral, não se refere unicamente a área da espiritualidade, mas ameaça qualquer tipo de relação humana que provoque intimidade entre duas pessoas, abertura confiante de uma e certa "superioridade" da outra por conta de conhecimentos e experiências maiores.
O alerta vale então para qualquer tipo de relação de ajuda: no campo da saúde física, mental, emocional, ou no campo pedagógico. Não podemos minimizar os riscos e devemos preveni-los trabalhando o nosso próprio coração, esse vaso de barro! Não precisa demonizar nem a nós, nem as demais pessoas, nem a sexualidade, nem as emoções. Mas precisamos afinar nossa percepção da fragilidade nossa e do outro, para não perder a ética das relações de respeito mútuo.
Também precisamos ficar
vigilantes para não misturar as áreas em jogo: como o corpo esta envolvido, o
meu e o do outro: olhar, expressão facial, sorriso, mãos, toque podem ter
várias conotações. Eu sei distinguir um toque essencial, de um toque sensual? Que
significado tem a refeição compartilhada, o caminho percorrido juntos, a disposição
das cadeiras que convida a conversar?
Lembrem-se também que hoje tudo pode ser filmado, gravado... Protege-se,
protege o outro! Permitem que a luz da sabedoria interior informe
com limpidez as expressões exteriores, sem deixar margens para interpretação deturpada.
Como Jesus olhava para a
mulher pecadora lavando e beijando sem pés com uma confiança infinita na sua
compaixão e no seu perdão? Em torno
deles, homens olhavam "esta mulher" com desejo... ou desprezo! O que ela leu no
olhar diferente do profeta de Nazaré que a recolocou de pé na liberdade de
tomar novo rumo? Deixo a pergunta em
aberto para você responder depois de rezar!
Voltemos às
raízes da sabedoria divina: tomar consciência do que se passa em nós,
do que se passa no outro, e então escolher atitudes que condizem não apenas com
a ética, mas também com nossa vocação pessoal, e usar suas habilidades para
curar, libertar, aconselhar quando for solicitado, sem jamais se aproveitar e
se deixar contaminar pelo vírus do abuso de poder. É tudo questão de motivação
fundante e de coêrencia interior!
Felizmente ha muito tempo
temos a vacina para garantir a imunidade, ela se chama simplicidade
lúcida, prudência e humildade, ela se chama também busca pessoal de ajuda e de
supervisão quando for necessário... Ela se chama sobretudo oração de pedido
diante das nossas fragilidades e carências, oração de jubilo e gratidão não
porque os demônios caiem quando nos encontram- mas porque o nosso nome esta com muito carinho
tatuado na palma da mão de Jesus.
Terminei de escrever esta
reflexão ontem, na festa de S Agostinho. Não posso deixar de
esboçar uma ligação entre nosso tema e este santo que na sua época, foi um
grande animador vocacional e acompanhante espiritual, por todo lugar onde
passou depois da sua conversão: comunidade cristã, vida sacerdotal, mosteiros.
Na pré-história da psicologia, temos duas obras do mundo antigo que são consideradas como "Tratados de psicologia", bem antes que essa exista como ciência positiva. São as chamadas "Confissões de Jeremias" no AT e as "Confissões de S Agostinho"! Vou ficar com esta última obra. Pouco a ver com o sacramento da confissão que naqueles tempos, não existia na forma conhecida hoje. A obra de S Agostinho é uma introspecção autobiográfica, uma releitura da vida num clima de gratidão a Deus...e por isso se chama confissão!
Lendo aquelas paginas sinceras,
você descobre a motivação profunda que leva uma pessoa a converter-se, a buscar
uma nova e melhor versão de si mesma e depois a ajudar os outros neste caminho
de vida e de redenção, respeitando sempre sua liberdade soberana. "Tarde te
amei, Senhor... mas agora eis-me aqui!"
Fui muito tocada pelos dois
textos bíblicos escolhidos na liturgia das horas para relembrar o rosto
espiritual do grande Padre e Doutor da Igreja que foi Agostinho. (Alguns dizem
se tratar da inteligência mais brilhante dos dez primeiros séculos da teologia
cristã.)
São dois textos muito
simples, humildes e concretos, focados no essencial, confirmando nossa conversa
de hoje. Termino com eles, esperando que você os transformem com muito proveito
em leitura orante sobre os aspectos
psicológicos do animador vocacional.
"Aprendi a sabedoria sem
falsidade e reparto-a sem inveja. Não escondo suas riquezas. Deus me conceda
falar segundo o seu desejo e ter pensamentos dignos dos dons que recebi, pois
Ele é o guia da sabedoria e também corrige os sábios. Em suas mãos estamos nós,
assim como a sabedoria e toda habilidade." Sab 7, 13-14.
Eis o foco, a fonte: sabedoria interior, espiritual. Vejamos agora, na da carta de Tiago, as habilidades que ela faz crescer em nós: "A sabedoria que vem de Deus é retidão, em seguida paz, tolerância, compreensão. Ela é plena de misericórdia e frutífera, sem parcialidade ou hipocrisia. Um fruto de justiça é semeado na paz, para aqueles que trabalham pela paz" Tg 3,17-18.
Que o Senhor Jesus nos
conceda, a todos e todas nós que animamos os vocacionados e vocacionadas, o Espírito
de sabedoria e que possamos com a sua força e luz, treinar estas habilidades
que dela decorrem!
Bibliografia:
Inteligência emocional
(QE) Goleman,
Daniel, Inteligência emocional. Objetiva, 95
Inteligência espiritual
(QS) Danah Zoar,
Inteligência espiritual. Vive Livros, 2011.
*Annette Havenne é religiosa da congregação das Irmãs de Santa Maria. Nasceu na Bélgica e vive no Nordeste do Brasil, em comunidades de inserção e missão, na periferia de Aracaju (SE). Tem formação na linha da psicologia, teologia e acompanhamento espiritual. Colabora com a Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) no campo da formação, sobretudo das Novas Gerações e do Acompanhamento Espiritual. Atualmente serve sua congregação como Conselheira Geral.