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Sacerdócio e Liturgia

14.01.2012

Frei José Ariovaldo da Silva, religioso franciscano e especialista na área da Liturgia, apresentou este estudo no último Encontro Rogate, em novembro de 2003. Reflete, no texto, a relação entre “Sacerdócio Universal e Ministerial” e “Liturgia”. O estudo também foi apresentado na 17ª Semana de Liturgia, do Centro de Liturgia da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, em outubro de 2003. 

Sacerdócio e Sacrifício

Quando nos referimos a “sacerdócio” ou “sacerdote”, o que vem em primeiro lugar em nossa cabeça? Como que espontaneamente, pensamos nos padres e na reza e ritos que eles fazem no altar, sobretudo quando celebram a missa ou outro sacramento. Pensamos, portanto, numa determinada classe de pessoas encarregadas de determinados tipos de celebrações, sobretudo a missa.
A partir do Concílio Vaticano II, vamos ter que, neste sentido, passar ainda por um grande processo de re-evangelização, uma enorme mudança de mentalidade, uma profunda ‘terapia’ espiritual de nosso imaginário religioso católico.1 Sem querer, absolutamente, desmerecer o ministério ordenado, temos que, de certa maneira, reverter essa situação.
Para tanto, temos que ver a questão do sacerdócio com uma lente que nos leve a enxergar bem mais longe, para dentro da mais brilhante estrela a iluminar permanentemente a vida de cada um de nós. 
A palavra “sacerdócio” (que vem do latim: sacerdotium) deriva-se do substantivo latino sacerdos (sacerdote), que, por sua vez, vem da soma (ajuntamento) de duas outras palavras: SACER (do latim: sagrado, segregado, reservado, inviolável, intocável) + DOT (do verbo grego dídomi - διδωµι: dar, oferecer, entregar, fazer/realizar uma oferta; faz lembrar dote). Assim, sacerdote seria a pessoa que oferece à divindade coisas sagradas (reservadas somente para Deus), os sacrifícios; também a pessoa que preside as cerimônias de um culto religioso em que se oferece à divindade as orações, homenagens, sacrifícios. E sacerdócio seria o exercício da função própria de quem é incumbido deste serviço.
Como vimos, sacerdócio liga-se a sacrifício. Esta palavra também vem do latim - sacrificium -, que, por sua vez, também vem da soma (ajuntamento) de duas outras palavras: SACRUM (do latim: alguma coisa sagrada, reservada, inviolável, intocável, de que não se pode abrir mão) + FÁCERE (do latim: fazer, realizar, operar). “Sacrifício”, portanto, traduzindo literalmente, seria: algo sagrado, muito especial, irrenunciável, de que não se pode abrir mão, que a gente tem que fazer, realizar, a todo custo... Então, como cristãos, poderíamos perguntar: o que será que Deus pede que o ser humano faça, a todo custo, e disso não dá para abrir mão, pois é próprio de Deus mesmo? 

Culto a Deus:
Vocação Universal

Outra palavra que ocorre muito em nossa linguagem bíblica e cristã, em torno da qual nós liturgistas também nos debatemos, é a palavra culto. Esta palavra também vem do latim, ou melhor, vem do verbo latino cólere, que significa cultivar. Daí vem a palavra “colono”, a pessoa que cultiva a terra. O particípio passado de cólere é cultus. Daí vem também “cultura”: tudo o que o ser humano cultiva para, em última instância, garantir a vida e a sobrevivência. Falamos de uma pessoa “culta”, a saber, a pessoa que cultiva o saber, o conhecimento, a ciência. Então, poderíamos perguntar: o que seria “cultuar” Deus, ou também, prestar culto a Deus? 
Deus falou a Moisés, no monte Sinai, após a saída do Egito: “Diga aos israelitas o seguinte: vocês viram o que fiz aos egípcios, e como carreguei vocês sobre asas de águia e os trouxe até mim. Agora, se vocês realmente ouvirem minha voz e guardarem a minha aliança, serão minha propriedade exclusiva dentre todos os povos. De fato, é minha toda a terra, mas vocês serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa. Diga isso para os israelitas” (cf. Ex 19,3-6).
Como se vê, todo o povo de Israel é chamado a ser “povo sacerdotal”. E este sacerdócio consiste no seguinte: ouvir a voz de Deus (isto é: realizar e garantir na sociedade, pela vivência do amor, tudo o que Deus mesmo havia feito em favor do povo, ao libertá-lo da escravidão; ‘cultivar’ Deus!) e manter-se fiel à sua aliança (isto é: garantir o mútuo compromisso selado, de viver este amor “de todo coração e com toda a alma”: ‘cultivar’ a proposta de Deus!). Todo o povo é chamado a honrar a Deus, prestar-lhe culto, deste jeito: ouvindo a sua voz e guardando a sua aliança. Disso não dá para abrir mão, se o povo quiser ser um povo feliz, realizado, cheio de vida. Isso é sagrado!
Para assegurar de certa maneira esta vocação ‘universal’ do povo de Israel, estabeleceu-se até mesmo um ministério específico, o dos sacerdotes. Suas principais funções eram o serviço do culto e o serviço da Palavra. No serviço do culto, sua principal tarefa consistia em oferecer os sacrifícios, sobretudo imolando animais. Como mediadores entre Javé e seu povo, apresentavam a Deus as ofertas dos fiéis e transmitiam a estes a bênção divina. Os sacrifícios, como expressão de reconhecimento e submissão a Javé, eram oferecidos pelo povo e apresentados pelos sacerdotes. No serviço da Palavra, sua principal função era transmitir e assegurar a tradição, codificada nos relatos que lembram as grandes recordações do passado e da Lei. Dessa Palavra é que os sacerdotes são ministros, como Aarão em Ex 4,14-16.2 
Nesta linha, são eles que também garantem a redação escrita da Lei nos diversos códigos: o Deuteronômio, a Lei da santidade (Lv 17-26), a Torá (livro da Lei) de Ezequiel (40-48), a legislação sacerdotal (Ez, Lv, Nr), a compilação final do Pentateuco (cf. Esd 7,14-26; Ne 8). Por isso que o sacerdote aparece como o homem do conhecimento (Os 4,6; Ml 2,6s.; Eclo 45,17): é o mediador da Palavra de Deus, na forma tradicional de história e de códigos. Nos últimos séculos do judaísmo, com a multiplicação das sinagogas, o sacerdócio se concentra em suas tarefas rituais. Ao mesmo tempo cresce a autoridade dos escribas leigos que, vinculados em geral à seita dos fariseus, serão no tempo de Jesus os principais mestres em Israel.
Porém, a Palavra de Deus, adaptada às diversas circunstâncias da vida, chega ao povo de Israel também por um outro caminho: o dos profetas. Movidos pelo Espírito, eles têm a árdua missão de lembrar a vocação primordial de Israel, que consiste em ouvir a voz de Deus (obedecer à Palavra) e manter-se fiel à aliança. Vocação para ser um povo sacerdotal, ‘reservado’ para Deus, em primeiro lugar pela vivência da justiça, do amor, da misericórdia. Daí as ferrenhas críticas que os profetas fazem, em nome de Deus, tanto aos sacerdotes corrompidos quanto aos sacrifícios e rituais vazios, sem compromisso com o amor e a justiça (cf. Is 1,10-20; Jr 7,1-23; Am 5,21-25; Mq 6,6-8). Famoso o apelo de Deus em Os 6,6: “Eu quero o amor e não sacrifícios”. O sentimento íntimo de agradecimento pelos benefícios recebidos (Sl 49,14.23), ou de arrependimento e de conversão pelo pecado (cf. também Sl 50,18-19; Os 8,11-12; Am 6,21-25; Dn 3,37-41), é este o sacrifício que agrada a Deus. É por aí que deve ir a vocação de Israel para ser “povo sacerdotal”! 

Jesus e o Sacerdócio

Jesus reconhece a função dos sacerdotes, mas enquanto ela estiver a serviço das pessoas. Temos um exemplo no relato da cura do leproso (cf. Mc 1,40-45; Mt 8,1-4; Lc 5,12-16): Jesus manda o homem curado apresentar-se aos sacerdotes. Acontece, porém, que Jesus manda o moço se apresentar, não por pura deferência ao sacerdote em si, mas para ser ‘oficialmente’ reconhecido como curado e poder ser reintegrado na sociedade. Jesus se serve, pois, da instituição cultual (o ministério sacerdotal) para resgatar a cidadania ao homem curado da lepra. Como que para dizer: o verdadeiro sacerdócio é aquele que liberta e salva as pessoas. No fundo, é o que Jesus mesmo está fazendo, ao mandar o leproso curado se apresentar aos sacerdotes. 
Aliás, os evangelhos, quando abordam a figura dos sacerdotes, os vêem sempre de forma muito crítica (cf. Lc 10,30-37: parábola do bom samaritano; Lc 1,5-56, fazendo uma comparação entre o sacerdote Zacarias e Maria!). Sobretudo os sumos sacerdotes, “o clero superior do templo” (J. Jeremias), nunca aparecem nos evangelhos em sua função cultual, em seu papel de homens religiosos dotados de ‘eterna santidade’, relacionando-se com Deus. Aparecem somente como mentores dos grandes sofrimentos que Jesus devia enfrentar (cf. Mt 16,21; Mc 8,31; Lc 9,22), como homens que tramam a morte de Jesus (cf. Mc 10,33; 11,18; Mt 20,18; 21,23.45; 26,3.14.47.51.57-59.62-65 par.; Lc 10,19). 
Interessante que em nenhum lugar do Novo Testamento Jesus é chamado de sacerdote, e muito menos de sumo sacerdote, a não ser (curiosamente!) na Carta aos Hebreus (Hb 7,23-28; 9,11-12; 10,5-14). Por estes textos, dá para ver que o “sacerdócio de Jesus” é entendido não em sentido ritual, mas existencial. A saber, ele não é um ‘separado dos demais’, como acontecia tradicionalmente com os sacerdotes, mas se solidariza radicalmente com todos. A saber, ele mergulha de cabeça no abismo da realidade humana: Me fizeste um corpo...
Ele mesmo, na total obediência ao Pai, ‘se deixa sacrificar’ até a morte e morte de cruz, até a última gota do seu sangue. Ele é visto como sacerdote, não colocando em prática ritos sagrados, mas na radical obediência ao Pai, entregando (‘sacrificando’) toda a sua vida a serviço das pessoas, sobretudo em sua morte, para a salvação do ser humano. Sua ressurreição é a marca definitiva de que este é o culto que mais agradou a Deus. Assim, Jesus levou à plenitude a vocação primordial do povo de Israel, anunciada em Ex 19,3-6 e, consequentemente, ficou ab-rogada a instituição sacerdotal judaica. 
Em Cristo, único sacerdote verdadeiro, formando nele um só corpo (cf. 1Cor 12,12-31) pelo batismo, fomos naturalmente constituídos o novo e verdadeiro “povo sacerdotal”, como o proclamam a Primeira Carta de Pedro e o Apocalipse de João (1Pd 2,4.5.9; Ap 1,5b-6; 5,6-10; 20,4-6). Temos outras passagens do Novo Testamento onde não aparece explicitamente a denominação ‘sacerdotes’ ou ‘sacerdócio’ para os cristãos, mas são empregadas aí outras expressões referentes ao sacerdócio, sobretudo no seu ato mais característico, o sacrifício (Rm 12,1-2; Ef 2,11-14a.18-22; Hb 4,14-16; 10,19-22; 13,15-16). Em outras palavras, participantes do único sacerdócio de Cristo, como povo sacerdotal, temos um único sacrifício que realmente agrada a Deus: o sacrifício de Cristo e, em Cristo, toda a nossa vida cristã solidária com os irmãos e irmãs, na vida e na celebração.

O sacerdócio na patrística

Na patrística, isto é, nos escritos cristãos dos primeiros séculos, os textos bíblicos utilizados para falar do sacerdócio dos cristãos podem ser agrupados em duas séries: 1) os ligados à vida humana, vivida na linha religiosa de Jesus, particularmente Jo 4,23 (“os verdadeiros adoradores do Pai”), Rm 15,16 e Fl 2,17 (a vida apostólica e a conversão a Jesus Cristo como liturgia ou culto oferecido a Deus), e Rm 12,1 (o culto espiritual da oferta de si mesmo a Deus qual sacrifício vivo); 2) os textos de 1Pd 2,4-10 e Ap 1,6; 5,10 e 20,6 sobre o povo cristão assinalado com o sacerdócio real.
A primeira série de textos é usada num contexto apologético dos cristãos contra judeus e pagãos. Usando estes textos, os cristãos afirmam que “o culto cristão é diferente, é um novo modo de entender a religião. Esta se entende na santidade da vida entregue a Deus e não em meros gestos rituais ou ofertas cultuais independentes da vida. Explicando seu culto como novo modo de entender o laço ‘religioso’, os cristãos se qualificam como ‘sacerdotes’, bem como os únicos e verdadeiros sacerdotes de toda a humanidade”.3 Como escreve Tertuliano: “Esta é a oferenda espiritual que aboliu todos os antigos sacrifícios... Está escrito: ‘Virá o momento em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade’ e tais adoradores ele os procura. Nós somos os verdadeiros adoradores e os verdadeiros sacerdotes, porque, orando no espírito, no espírito oferecemos nossa oração a Deus, como hóstia a ele devida e por ele aceita. Ele pediu esta oferta e a esta oferta dirige seu beneplácito”.4 
A segunda série de textos, relativos ao sacerdócio real (regale sacerdotium), é aplicada num duplo contexto: de um lado, o sacramental (batismal), atribuindo o sacerdócio a todos os cristãos, e, de outro, querendo reservar o título de sacerdócio aos ministérios ordenados. Nos batizados se cumpre a promessa de Ex 19,6, isto é, os cristãos são todos reis e sacerdotes. Não necessitam mais da mediação de uma instituição sacerdotal, como era antigamente e como é entre os pagãos, para se aproximarem de Deus. Pelo batismo, todos são consagrados (reservados para Deus), se aproximam diretamente de Deus. Neste sentido, o cristão é sacerdote, está marcado por um regale sacerdotium (sacerdócio real). A antiguidade cristã, por outro lado, aos poucos vai hierarquizando a diversidade de ministérios existentes para o exercício da vida cristã, com destaque para os diáconos, presbíteros e bispos. Estes dois últimos (presbíteros e bispos) na qualidade de chefes das comunidades, foram, pouco a pouco e, cada vez mais, só eles, sendo qualificados e distinguidos como sacerdotes. 
Da Idade Média para cá, sobretudo, quando se falava de sacerdote, normalmente se pensava exclusivamente nos presbíteros. E isso atravessou praticamente todo o segundo milênio. Fomos evangelizados com essa compreensão reduzida de sacerdócio, exaltando de tal maneira o sacerdócio ministerial, que o sacerdócio de todos os cristãos acabou caindo praticamente no esquecimento, e até nem sendo admitido. Consequentemente, vimos o clero transformado em casta sacerdotal à imagem dos sacerdotes do Antigo Testamento e do paganismo, monopolizando toda a Liturgia. E os cristãos, não se sentindo mais sacerdotes, praticamente deixam de participar ativamente da Liturgia. Apenas assistem aos cerimoniais realizados pelo ‘profissional do culto’, o sacerdote. 

Vaticano II:
o resgate do perdido

Com o Concílio Vaticano II assistimos finalmente o resgate de uma verdade que havíamos esquecido (perdido!) por mais de um milênio, a saber, que todos somos o verdadeiro “povo sacerdotal”. Participantes do único sacerdócio de Cristo, pelo batismo, todos somos sacerdotes e sacerdotisas.
A Constituição sobre a Liturgia, o primeiro documento do Concílio, não traz uma formulação doutrinal explícita sobre este sacerdócio, pois não era seu objetivo. Ela virá em documento posterior, a saber, na Constituição Dogmática sobre a Igreja, a Lumen Gentium. 
No número 10 da Constituição Dogmática (dogmática!) sobre a Igreja, vemos finalmente resgatada a compreensão do sacerdócio universal de todos os cristãos. Vale a pena conferir o que diz o documento, numa síntese verdadeiramente esplêndida: “Cristo Senhor, Pontífice tomado dentre os homens (cf. Hb 5,1-5), fez do novo povo ‘um reino de sacerdotes para Deus Pai’ (Ap 1,6; cf. 5,9-10). Pois os batizados, pela regeneração e unção do Espírito Santo, são consagrados como casa espiritual e sacerdócio santo, para que por todas as obras do homem cristão ofereçam sacrifícios espirituais e anunciem os poderes d’Aquele que das trevas os chamou à sua admirável luz (cf. 1Pd 2,4-10). Por isto, todos os discípulos de Cristo, perseverando em oração e louvando juntos a Deus (cf. At 2,42-47), ofereçam-se como hóstia viva, santa, agradável a Deus (cf. Rm 12,1). Por toda parte dêem testemunho de Cristo. E aos que o pedirem, dêem as razões da sua esperança da vida eterna (cf. 1Pd 3,15)”.
Com certeza, foi tendo como pano de fundo esta verdade, que ela aparece já na Constituição sobre a Liturgia, antes da definição explícita da doutrina.
Chama a atenção que na Sacrosanctum Concilium a Liturgia vem definida como “exercício do sacerdócio de Jesus Cristo, no qual... é realizada a santificação do ser humano, e é exercido o culto público integral pelo Corpo Místico de Cristo, Cabeça e Membros” (n. 7). Este sacerdócio aparece de alguma maneira, implicitamente, já nos números 5 a 8: a obra da Salvação, prenunciada por Deus, realizada em Cristo; esta obra continua na Igreja e se coroa na sua Liturgia. Este Jesus é o único sacerdote. Afirma-se também que na Liturgia, na qual se torna presente este Cristo (ibidem), o ser humano é santificado. Quer dizer: é iniciado e/ou ‘confirmado’ (‘sancionado’: do latim sancire-sanctus) sempre de novo na sua consagração (‘reservação’ para Deus, da qual não dá para abrir mão) ‘como sacerdote no único sacerdócio de Cristo’. 
Assim sendo, consequentemente, na Liturgia, todos os cristãos, consagrados (‘sancionados’) como “povo sacerdotal” (Corpo Místico de Cristo, Cabeça e Membros), realizam o melhor ato de submissão, reconhecimento e gratidão a Deus por ter-nos feito participantes de sua própria vida divina.

Participação Sacerdotal na Liturgia

Agora se entende também a insistência do documento sobre a participação ativa de todo o povo cristão na Liturgia, como um direito e obrigação: “Deseja ardentemente a Mãe Igreja que todos os fiéis sejam levados àquela plena, cônscia e ativa participação nas celebrações litúrgicas, que a própria natureza da Liturgia exige (!) e à qual, por força do batismo, o povo cristão, ‘geração escolhida, sacerdócio régio, gente santa, povo de conquista’ (1Pd 2,9; cf. 2,4-5) tem direito e obrigação” (n. 14; cf. n. 30). Se somos um povo que Deus ‘conquistou’ para si (e disso ele não abre mão: consagrado, reservado, santificado, povo sacerdotal!), e todo este mistério está presente nas celebrações, não resta senão honrar o direito e dever que nos foi dado de participar de maneira plena, consciente e ativa do culto público e integral, cujo centro é o “sacrossanto mistério da eucaristia”, não mais “como estranhos ou mudos espectadores” (n. 48).
E como se exerce na prática tal participação ‘sacerdotal’? A Sacrosanctum Concilium a especifica nos seguintes termos: a) todos “sejam instruídos pela Palavra de Deus” (n. 48); b) “ofereçam a vítima sem mancha, não somente pelas mãos do sacerdote, mas juntamente com ele” (ibidem); c) “que aprendam a oferecer-se a si próprios (!) e diariamente se aperfeiçoem, pela mediação de Cristo, unidos com Deus e entre si, para que Deus seja, afinal, tudo em todos” (ibidem); d) “que se alimentem à mesa do Senhor e dêem graças” (ibidem); recomenda-se “vivamente” a perfeita participação na missa, pela qual os fiéis, após a comunhão do sacerdote presidente, recebem o Corpo do Senhor do mesmo Sacrifício (n. 55); e) orem em comum: “restabeleça-se a ‘oração comum ou dos fiéis’ após o evangelho e a homilia, sobretudo nos domingos e outras solenidades.
Enfim, resta-nos uma última pergunta: E o “sacerdócio ministerial”? Como fica? Qual o seu caráter específico? Em que se baseia, por exemplo, a diferença entre o sacerdócio universal e o sacerdócio ministerial?

O específico do
sacerdócio ministerial

Vejamos, primeiro, o que diz a respeito o próprio Concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática sobre a Igreja: “o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial... ordenam-se um ao outro, embora se diferenciem na essência e não apenas em grau. Pois ambos participam, cada qual a seu modo, do único sacerdócio de Cristo. O sacerdote ministerial, pelo poder sagrado de que goza, forma e rege o povo sacerdotal, realiza o sacrifício eucarístico na pessoa de Cristo e o oferece a Deus em nome de todo o povo. Os fiéis, no entanto, em virtude de seu sacerdócio régio, concorrem na oblação da Eucaristia e o exercem na recepção dos sacramentos, na oração e ação de graças, no testemunho de uma vida santa, na abnegação e na caridade ativa” (LG 10). 
Diz o Concílio que a diferença se situa na essência e não apenas em grau. Pois ambos participam, cada qual a seu modo, do único sacerdócio de Cristo. Note-se que se fala do sacerdócio (universal ou ministerial), e não das pessoas que o exercem! Assim sendo, a partir do batismo, todos os membros da Igreja (todos!) são radicalmente iguais. Os ministros ordenados continuam sendo membros do povo de Deus (neste sentido permanecem “leigos”). O Vaticano II enfatizou esta doutrina.
Mas como explicar, então, a especificidade do sacerdócio ministerial (ou ministério ordenado)? Hoje os teólogos vêem que “a diferença, mais do que de natureza, é funcional: não principalmente em razão de algumas funções específicas que seriam exclusivas dos ministros, mas em razão da função global que desempenham no interior do organismo eclesial”. Neste nível, devemos situar a afirmação do Vaticano II, quando diz que o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial diferem “essencialmente e não apenas em grau”. A situação dos ministros no corpo da Igreja é “essencialmente” distinta daquela que ocupam os leigos, mas isto não significa que gozam de maior “dignidade” ou que estão “acima” deles.5
E como fundamentá-la teologicamente? A raiz teológica pode ser buscada na própria relação Cristo-Igreja. A saber, o que melhor caracteriza a maneira específica de o ministro ordenado referir-se a Cristo na Igreja, diferentemente dos demais cristãos, é o fato de ser consagrado pelo Espírito (e disso Deus também não abre mão!) para ser ‘sinal de Cristo, cabeça e pastor’. O Novo Testamento mostra que Cristo mantém uma dupla relação diante da Igreja, que é seu corpo: uma relação de interioridade, que vai até a identificação mística - todos nós somos seus membros; somos Cristo (cf. 1Cor 12,12; At 9,4) - e uma relação de superioridade e de autoridade expressa em textos como 1Cor 11,3.7. 
Esta segunda relação dá origem a uma alteridade: a alteridade Cristo-Igreja. Situa Cristo ‘diante da’ Igreja. Esta alteridade é também constitutiva do ser da Igreja. Significa que Cristo é tudo para a Igreja. Sem Cristo a Igreja é impensável. Em tudo o que se refere à existência da Igreja, a iniciativa corresponde inteiramente a Cristo. Ele é a origem e a fonte da Igreja, não só historicamente, mas também atualmente, de forma permanente: ‘Cristo amou a Igreja e se entregou por ela para consagrá-la’ (Ef 5,25-26): um mistério sempre atual de amor e fidelidade que ilumina perenemente a Igreja. Queremos dizer isto quando afirmamos que Cristo é a cabeça da Igreja. As misteriosas relações entre a Cabeça e o Corpo constituem o núcleo vital, o princípio da vida do organismo eclesial. Todas estas afirmações configuram um aspecto essencial à identidade da Igreja. 
“É importante que a Igreja... tenha consciência desta dependência sua de Cristo; que se sinta prevenida pelo amor de seu Esposo, convocada, reunida, alimentada, salva pela Palavra de Deus - Cristo morto e ressuscitado -; que recorde que não é fonte de si mesma, mas pura referência (sacramentum) a Cristo e à sua salvação. Está em jogo a própria identidade da Igreja”.6
Ora, para manter-nos conscientes desta realidade do Cristo-Cabeça da Igreja, Cristo quis que ela nos fosse “visualizada” por um sinal. E o sacerdócio ministerial é este sinal: assim o crê a Igreja Católica. Trata-se do mesmo sacerdócio universal, mas acrescido de um serviço ‘essencialmente’ bem específico, dado pelo Espírito: o de ser o ‘sinal do amor de Cristo por sua Igreja’, de sua fidelidade de esposo; é a visibilização sacramental da ‘entrega de si mesmo por ela’; é o símbolo do mistério da gratuidade de Deus na salvação e da primazia da graça divina. Recorda a todos que é Cristo como cabeça quem continua, pelo Espírito, reunindo e mantendo unido e vivo o seu corpo. Em outras palavras, nele se revela à Igreja a auctoritas (autoridade) de seu Senhor: ‘Auctoritas’ em seu sentido etimológico (de ‘augere’, crescer), ‘a autoridade com que Cristo forma, santifica, rege o seu corpo’ (PO 2). O ministério apostólico é sinal e servidor da alteridade Cristo-Igreja. 
Isto significa que o sacerdócio ministerial é também sinal da dependência da Igreja em relação a Cristo, de sua referência constante e obrigatória ao Cristo vivo, sem o qual não há Igreja. “Segundo estas premissas é preciso admitir que, embora continue fazendo parte do povo de Deus, o ministro ordenado está de alguma forma ‘diante’ dele (servindo a alteridade Cristo-Igreja) e na ‘frente’ dele (tem sua condição de sinal de Cristo cabeça). Se lhe faltasse este sinal, a Igreja não se reconheceria a si mesma como Igreja de Cristo”.7 
Portanto, o ministro ordenado é sinal eficaz do mistério que ele representa. Daí que a idéia de “representação” deve ser tomada aqui em seu sentido forte: como representante de Cristo cabeça, no exercício de sua função, o ministro torna visível, presente e atual a ação salvadora de Cristo por sua Igreja.

Ministério da Unidade

O Vaticano II quis significar tudo isso quando afirmou que os ministros da Igreja são “sinais de Cristo, cabeça e pastor” (LG 28; PO 2, 6, 12; AG 39). Note-se que acrescentou a palavra “pastor” (LG 28 e PO 6). Certamente para evitar o perigo do excessivo verticalismo que a palavra ‘cabeça’ poderia sugerir.
Portanto, sempre que age como ministro, não pode deixar de fazê-lo como ‘sinal de Cristo, cabeça e pastor’. Precisamente nisto se resume ‘o específico’ do ministério apostólico, o que diferencia dos ‘sacerdotes’ não ordenados. 
Neste sentido, a tarefa dos ministros é então de ‘organizar’ o esforço comum de todos os batizados, integrar os carismas de todos, coordenar harmonicamente todos os serviços, animar o funcionamento da co-responsabilidade de todos os membros, para que a Igreja esteja em condições de cumprir sua missão no mundo. “Sua exata função é apascentar de tal modo os fiéis e reconhecer de tal maneira seus serviços e carismas, que todos, cada qual a seu modo, cooperem unanimemente na obra comum” (LG 30).
“É, pois, um carisma de direção, de coordenação, de governo, de presidência, como corresponde à cabeça num organismo. Em última instância, o ministério sacerdotal é ministério da unidade, num sentido próprio e característico, no qual não o é o dos leigos. ‘Para que os fiéis se fundissem num só corpo, o mesmo Senhor constituiu alguns deles ministros’ (PO 2). É responsabilidade sua fazer com que o serviço de todos seja um serviço de corpo, uma ‘diakonia’ corporativa”8.
E, para terminar, gostaria de trazer aqui uma interessante explicação do nosso mestre Pe. Gregório Lutz: “O sacerdócio ordenado é superior ou inferior ao sacerdócio comum? Qualifico esta pergunta como ociosa porque nenhum dos dois sacerdócios têm sentido sem o outro. Mas como para muitos é difícil superar a visão da sublimidade quase angélica do sacerdócio ministerial, eu go9staria de apresentar uma comparação muito simples, mas prática: na construção de uma casa ou de um prédio trabalham pedreiros e serventes. Se fossem só serventes, a solidez da construção não seria garantida. Se fossem só pedreiros, quem poderia pagar a mão-de-obra? Os dois são igualmente importantes. Assim é também na liturgia: deve haver ministros ordenados e ministros, e outros participantes, leigos. Mas se alguém insistir perguntando: Afinal, o pedreiro não é mais importante do que os serventes? - Eu perguntaria: E quem são na liturgia os pedreiros e quem são os serventes? Aí a resposta é clara: Os serventes são, como diz o seu nome mesmo, os ministros, os ordenados; os pedreiros são os outros participantes da celebração. O mesmo dizem, em outras palavras, o grande teólogo do Concílio Vaticano II, Karl Rahner, e seu discípulo Herbert Vorgrimler: ‘A que o sacerdócio ministerial visa é ao sacerdócio comum dos fiéis. Este é, medido com uma última medida, o mais sublime’ (K. Rahner e H. Vorgrimler, Kleines theologisches Wörterbuch, Freiburg, 1961 [Herderbucherei 108/109], p. 300)”.9

Notas:
1 Cf. José Ariovaldo da Silva. “Sacrosantum Concilium” e reforma litúrgica pós-conciliar no Brasil. Um olhar panorâmico no contexto histórico geral da liturgia: dificuldades, realizações, desafios. In: CNBB. A sagrada liturgia 40 anos depois (Estudos da CNBB, 87). São Paulo, Paulus, 2003, p. 33-51.
2 Na liturgia das festas, eles lêem sempre de novo para os fiéis os relatos que fundamentam a fé. Por ocasião da renovação da Aliança, eles proclamam a Torá (cf. Ex 24,7; Dt 27; Ne 8). Eles são intérpretes ordinários do livro da Lei, respondendo às consultas dos fiéis com instruções práticas, e exercem uma função de juiz (cf. Ex 24,7; Dt 17,8-14; 27; 33,10; Ne 8; Jr 18,18; Ez 44,23s; Ag 2,11ss).
3 Vittorino Grossi. Sacerdócio dos fiéis. In: Angelo Di Berardino (Org.). Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs. Petrópolis/São Paulo, Vozes/Paulus, 2002, p. 1.240. 
4 De oratione 28,1-2. “Neste sentido, isto é, na ligação que existe entre o viver e o culto, os cristãos se consideram ‘sacerdotes da paz’, porque se opunham às violências do circo (Tertul., Spect. 16), falaram do ‘sacerdócio da viuvez’ (Tertul., Ad uxorem 1,7) e do ‘sacerdócio do martírio’ em ordem ao testemunho de Cristo (Cipr., Ep 77,3)” (Dicionário patrístico. Op. Cit., ibidem). 
5 Ignácio Oñatibia. Ministérios eclesiais. In: Dionísio Borobio. A celebração na Igreja II: Sacramentos. São Paulo, Loyola, p. 535. 
6 Ibidem, p. 536.
7 Ibidem, p. 537.
8 Ibidem, p. 538.
9 Gregório Lutz. Celebrar em espírito e verdade. São Paulo, Paulus, 1997, p. 36-37. 

Fonte: Revista Rogate de animação vocacional, Ano XXIII - nº 220 - Março de 2004, p. 11-10


Frei José Ariovaldo da Silva, OFM